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Rotas do Vento

Malásia: Sobrevivência na Selva – Gonçalo Velez

Antes de saírmos da aldeia de Uluche tinha-nos sido entregue um conjunto de rações que deveríamos gerir da melhor forma ao longo dos próximos dias e que seriam complementadas com os alimentos que iríamos colher. Além daquelas recebemos um tacho individual, fósforos e lixa, uma vela, um troço de combustível sólido e uma parang, a formidável catana malaia. O grupo era composto por dois guias e cinco aprendizes malaios, dos quais uma senhora, mais o português.

Pouco após iniciarmos a subida da colina parámos numa verdejante mata de bambus. Aqui tivemos a nossa primeira lição e a estreia da parang: a preparação do cantil a partir de um tronco grosso de bambu. Passando o ribeiro a subida torna-se mais íngreme e vamos abandonando a floresta habitada. Os guias aproveitam para fazer algumas paragens durante as quais nos mostram as espécies de plantas que são comestíveis: folhas tenras e caules que se descascam.. Pensei que se encontrariam imensos frutos gostosos mas o Mohamed, o guia-chefe, diz que mesmo que os houvesse os animais os colheriam primeiro. Também conhecemos folhas que mascadas saram feridas, e um tipo de vinha cujo tronco é poroso e do qual escorre água quando cortado. Aprendemos a retirar longas fibras da casca de uma certa árvore que se usam como cordas.

Halim, o segundo guia, é natural de Uluche e a sua profissão era caçador. O Governo aboliu recentemente a caça por motivos de preservação das espécies e está a subsidiá-lo. Agora ele dedica-se a colaborar nestes cursos de sobrevivência.

A meio do dia parámos à beira de um ribeiro pois iríamos cozinhar o almoço, e também o jantar por que o local de acampamento nessa noite não terá água. Surpresa ! Fazer fogo na selva não é como em nossa casa onde abundam os papéis de jornal, o combustível sólido e a lenha seca. Acabei a cozinhar a massa na fogueira do meu vizinho Cunnin, enquanto este comia. À falta de talheres comíamos com pauzinhos ao estilo chinês feitos por nós. Depois ainda cozemos arroz que aprendemos a embalar em grandes folhas para levarmos para o jantar.

Chegámos a meio da tarde ao campo Bravo 1, na floresta secundária. Uma lona no chão e outra suspensa das árvores formam um abrigo que se destina a proteger-nos da chuva. Halim mostra-nos como se constrói um grande abrigo com ramos atados com as fibras de casca de árvore. Todos cortam folhas da árvore Bertham para o cobrir. Uma camada espessa de folhas, suficiente para não se ver através dela, contêm uma chuva torrencial. Também aprendemos a colher as resinas da árvore maranti que são eficazes a atear o fogo.

Após o anoitecer, jantamos todos em torno de uma grande fogueira envolvidos pelos incríveis sons da selva.

É à noite que os medos dos citadinos emergem. Mohamed diz-me que as pessoas que penetram pela primeira vez na selva tropical pensam sempre no pior que lhes pode acontecer. Trazem visões de enormes cobras e escorpiões, de temíveis tigres e ursos prontos a atacar.

O seu lema é the jungle is neutral (a selva é neutra) pois considera que nenhum animal ataca se não se sentir ameaçado ou às suas crias. Por isso é importante compreender o meio e ter um mínimo de sensibilidade e de atenção para se conseguir aí viver sem grandes sobressaltos.

De manhã, tivemos várias sessões práticas sendo a primeira a extração da polpa comestível da árvore Bertham. É uma tarefa laboriosa por que implica descascar com a parang o tronco junto da raíz, muitas vezes com fracos resultados. O sabor desta polpa é muito indiferente mas o Al descobriu que polvilhando-a com sal o melhorava muito.

A seguir aprendemos como se sinaliza a nossa passagem na selva. Talvez esta seja a matéria mais importante do curso por que não só permite orientar-nos para regressarmos pelo mesmo caminho, como também fornece uma pista a qualquer equipa de salvamento. Também nos ensinaram a bater na raiz de uma grande árvore para fazermos propagar o som a quilómetros de distância. Halim afastou-se para sinalizar um percurso através da selva que pouco após iríamos seguir. Foi um exercício muito divertido e interessante. Demonstrou que os nossos olhos necessitavam ainda de bastante treino para detetar os vestígios que ele deixara.

À tarde iniciámos a descida para a selva primária, mais conhecida pelo termo rainforest. À medida que descíamos a vegetação tornava-se cada vez mais densa e verdejante. A variedade de plantas é assombrosa. O arvoredo compõe-se de vários níveis de copas, havendo árvores que ultrapassam os sessenta metros de altura e lançam longas e espetaculares raízes à superfície da terra. O ambiente é de penumbra por que a luz do sol não penetra através das folhagens (por isso tive imensa dificuldade em fotografar sem flash!). É encantador observar um ambiente tão viçoso onde as plantas crescem de todo o lado, e se entrelaçam umas nas outras reduzindo o campo de visão a uns seis metros de distância.

Chegámos ao campo Kilo 1 a meio da tarde. O local é muito agradável por que se situa numa clareira junto de um ribeiro de águas transparentes. Depois de montado o acampamento fomos à procura de bambus por que iríamos aprender a cozinhar nele e a fabricar outros utensílios, como pratos e talheres de servir. O bambu é muito plástico e tem enormes resistência e flexibilidade. As suas aplicações neste contexto são quase infinitas e incluem mobiliário de campo, armadilhas e alarmes, plataformas, até grandes cabanas de utilização permanente.

O Mohamed contou-me que avisa as pessoas para terem o cuidado de não se afastarem demasiado do acampamento por que podem perder-se. Por isso os guias têm sono leve e procuram estar sempre atentos ao que se passa em redor. Ele conta que uma noite estava vigilante e reparou que uma cliente americana se afastava do abrigo para se aliviar. Passado um pouco nota que a luz da sua lanterna se vai afastando. Levanta-se e segue-a, surpreendido por ela não perceber que o acampamento estava para trás (embora às escuras). Ao aproximar-se percebe que ela já se considerava perdida e ouve-a repetir com a voz trémula de angústia: “Oh my God, oh my God…!!”

Iniciámos o dia seguinte com um esplêndido banho numa das piscinas do rio onde jorrava uma cascata. Os raios do sol envolviam-nos e descontraímos sentados na areia com os peixes a debicarem-nos os pés. Nessa manhã fomos caminhar em grupo na selva. Cada um de nós conduziria o grupo à vez, sendo que o segundo auxiliava o primeiro a ultrapassar obstáculos e o terceiro marcava o caminho. Os guias deixaram-nos orientar como quisemos e seguimos um percurso que nos pareceu circular. Vimos marcas de javalis e estivemos a observar os gibões a rodopiar nos ramos superiores das grandes árvores. Foi um exercício muito interessante por que quando se decidiu regressar ao acampamento as opiniões divergiram muito. Havia pessoas muito seguras relativamente à direção a tomar e que estavam totalmente equivocadas.

Mohamed instruíu-nos dos riscos que poderíamos encontrar, nomeadamente as víboras que gostam de enroscar-se sob a copa das árvores pallas. Por isso caminhávamos com a parang numa mão e um bastão na outra para afastar as ramagens. Ele diz-me que há só dois animais que teme seriamente: o vespão e a cobra real. Felizmente que nos seus mais de quinze anos na selva nunca teve de enfrentar algum deles. Eu já tinha lido que, quando surpreendida, uma cobra venenosa que ataca injeta normalmente muito pouco veneno, às vezes mesmo nenhum. Apesar de a selva proteger do sol, o Mohamed andava sempre de chapéu. “É para o dia em que me aparecer uma cobra real pela frente. Se ela se atirar a mim arremesso-lhe o chapéu à cabeça e fujo a sete pés…”

Pergunto-lhe se algum de nós for mordido, o que fazem? “Temos os nossos métodos que aprendemos com os nativos. O Halim e eu já fomos mordidos pela cobra negra e pela víbora da Sumatra. O antídoto é de venda restrita e não é prático de transportar por que tem de estar a uma temperatura baixa. Lembra-te que a sobrevivência significa fazer o que tens de fazer, não importa onde estiveres, com o que tiveres à mão. Não te preocupes que os nossos métodos não falham. Já assisti muitos nativos e companheiros com sucesso”, informa-me com naturalidade.

Pela forma como me falava, ele era não só um apaixonado pela selva como também um estudioso empírico. Falou-me de experimentar quase de tudo no seu corpo para conhecer as consequências, e de sofrer febres terríveis. Ele foi comando especialista da selva durante muitos anos e viveu largos períodos neste meio. Durante o curso ele experimentou o efeito de umas folhas na pele do braço e concluíu que eram venenosas por que a pele tornou-se vermelha e com uma ligeira erupção, além de que lhe fazia comichão. Esse efeito passou em poucos dias.

Para reconhecer se uma planta é comestível ele ensinou-nos a esfregá-la a) no braço e esperar cinco minutos para ver o efeito, depois b) na pele fina e clara sob o braço e esperar cinco minutos, c) o mesmo método nos lábios, d) depois mastigar e deitar for a, e só no final deste processo se engole.

Senti-me algo desiludido no que respeita à fauna. Imaginei que iria observar aves multi-colores, mamíferos ágeis e répteis fugidios numa selva muito viva e movimentada. O que encontrei afinal foi uma Natureza serena mas muito sonora. Ouvia-se mas não se via, pois tudo parecia acontecer nas copas superiores. Quanto aos seres terrestres, são sobretudo activos à noite e de dia afastam-se ao mínimo ruído suspeito. Aliás, a sinfonia era muito mais espetacular à noite, com uma variedade de sons absolutamente inimagináveis (levei um micro-gravador mas infelizmente a fita enrolou-se!).

O grande problema nas selvas malaias são as pessoas que decidem ir passear e que se perdem o que, sem preparação, é muito fácil. É sempre difícil organizar um resgate por que as áreas são vastas e só os muito experientes, com sorte à mistura, conseguem detetar os vestígios dessas pessoas. Acresce que as vítimas enlouquecem passados poucos dias. O pânico invade-as por acharem que estão à mercê dos animais, por que o seu raio de visão é muito curto e não conseguem ter referências geográficas, e por que normalmente já andaram interminavelmente em círculos. Quando as equipas de resgate os encontram, eles fogem em pânico e oferecem enorme resistência física.

Os cerca de sete dias que passei na selva ensinaram-me imensas coisas, entre as quais o facto muito real de que comemos em demasia no nosso quotidiano. Conseguimos viver comendo parcamente e sem sentirmos qualquer desconforto. O sentimento de termos poucos alimentos fez-nos encarar os que possuíamos de forma diferente. Vi uma série de atitudes da parte dos meus companheiros e minhas que pareceriam muito bizarras em Lisboa. Apanhei, por exemplo, o Ben que após esvaziar uma lata de sardinhas e de lhe ter bebido o suco, molhava a ponta do indicador no que restava e o chupava! Às vezes dava por mim a tentar decidir se comia agora ou mais tarde uma barra de chocolate recheado com coco.
Também nunca me tinha visto a comer a totalidade de uma maçã (excetuando os caroços)!

Para além dos aspetos aliciantes ligados à observação da Natureza, este curso deu-me uma visão muito interessante da nossa existência num Mundo dominado pela sociedade de consumo ou sociedade da abundância. Foi muito salutar termos experimentado uma atitude perante a vida radicalmente diferente do que estávamos habituados.
No fundo, viajar implica isto mesmo: distanciar-nos dos nossos hábitos para vermos melhor ao longe, e termos a humildade de aceitar experimentar outros modos de vida que possam ensinar-nos algo de diferente. É isto que ambiciono para uma experiência de viagem.

PS: Não quero deixar de mencionar Malaca que conserva importantes vestígios da nossa presença nomeadamente a porta de Santiago da fortaleza A Famosa e o bairro dos cerca de quinhentos descendentes dos nossos colonos que ainda falam português.

Gonçalo Velez